A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira, 18 de novembro de 2025, uma emenda ao PL Antifacção que retira o direito de votar de todos os presos, mesmo aqueles ainda sem condenação definitiva. Com 349 votos a favor, 40 contrários e uma abstenção, a medida altera dois dispositivos do Código Eleitoral brasileiro, cancelando automaticamente o título de eleitor de qualquer pessoa recolhida a uma unidade prisional — independentemente de ter sido ou não julgada. O texto, apresentado pelo deputado Marcel Van Hattem (RS), líder do Partido Novo, foi incorporado ao substitutivo do relator Guilherme Derrite (PP-SP), e agora segue para o Senado Federal. A mudança, embora tecnicamente limitada em seu impacto eleitoral, abre uma ferida profunda no coração da Constituição: a presunção de inocência.
Um direito que existia desde 1988
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil garantiu que cidadãos presos provisoriamente — ou seja, aqueles que aguardam julgamento e ainda não foram condenados — pudessem votar. Isso se baseia no artigo 5º, inciso LVII, que afirma: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sempre cumpriu esse dever, instalando seções eleitorais especiais dentro de presídios. Nas eleições presidenciais de 2022, por exemplo, 12.903 presos provisórios estavam aptos a votar — e 11.363 deles compareceram às urnas. Nas municipais de 2024, mais de 6 mil votaram para escolher prefeitos e vereadores. Um número pequeno, sim. Mas um direito. Um princípio.Justificativa técnica ou motivação política?
A emenda alega que “o voto é expressão da plena cidadania, pressupõe liberdade e autonomia de vontade, condições inexistentes durante a custódia”. Também aponta custos operacionais e riscos logísticos para o Estado. Mas os números desmentem essa narrativa. O TSE gastou cerca de R$ 2,3 milhões em 2022 para organizar as seções prisionais — menos que o custo de um único voo da Presidência da República. E mesmo que todos os 12.903 presos provisórios tivessem votado no mesmo candidato, isso não mudaria o resultado da eleição presidencial de 2022, onde Lula venceu Bolsonaro por quase 1,9 milhão de votos. A diferença é tão grande que, se todos os presos provisórios do país votassem em um único candidato, ele perderia por 1,888 milhão de votos. Então por que agora?Na tribuna, o líder do Partido dos Trabalhadores (PT), Lindbergh Farias (RJ), fez uma declaração que ecoou por todo o plenário: “Vamos votar ‘sim’ sabendo que é inconstitucional”. Ele ironizou: “Parece que o Partido Novo já abandonou Bolsonaro. Agora quer tirar o voto dele. Hoje acontece o seguinte: quem tem trânsito em julgado não vota. Agora, já estão querendo antecipar para a prisão provisória a fim de impedir o voto de Bolsonaro”.
Os riscos de antecipar a pena
Especialistas em direito constitucional alertam: isso não é só uma mudança técnica. É uma antecipação de pena. E isso é perigoso. A prisão provisória é, por definição, temporária, preventiva — não punitiva. Retirar direitos políticos antes de um julgamento é como punir alguém por suspeita, não por prova. O Conselho Nacional de Justiça já emitiu pareceres afirmando que a medida fere o princípio da proporcionalidade. O Ministério Público Federal também já sinalizou que, caso a emenda seja aprovada no Senado, pode recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender a norma.
Um precedente que pode se espalhar
O que começa com presos provisórios pode acabar com outros grupos. Se a privação de liberdade justifica a retirada do voto, por que não retirar o direito de trabalhar, estudar ou receber assistência médica? A lógica é escorregadia. Países como os Estados Unidos já têm sistemas onde cidadãos com condenações penais perdem o voto — e muitos nunca o recuperam. Mas o Brasil sempre foi diferente. Aqui, o voto era visto como um direito de reconexão com a sociedade, não como um privilégio a ser retirado. Agora, essa tradição está em risco.Próximos passos e o que vem a seguir
Agora, o projeto vai para o Senado Federal, onde será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça. Lá, o debate será ainda mais técnico — e mais político. A bancada governista tem maioria, mas há resistência de partidos como PDT, PSOL e Rede. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, já disse que “a Constituição não pode ser alterada por emendas de ocasião”. A sanção presidencial, se aprovada, só virá após a análise jurídica. E mesmo assim, o STF pode derrubar a medida antes mesmo de ela entrar em vigor.
Por que isso importa para você
Você pode achar que presos provisórios não têm peso eleitoral. Mas o que está em jogo não é o número de votos. É o que a sociedade valoriza: a justiça, a dignidade, a presunção de inocência. Se um homem preso por suspeita — e ainda não julgado — perde o direito de votar, então qualquer um de nós pode perder esse direito por um erro de polícia, por um processo lento, por uma acusação falsa. A democracia não se mede por quem vence as eleições. Ela se mede por quem ainda pode participar delas, mesmo quando está no fundo do poço.Frequently Asked Questions
Por que a emenda é considerada inconstitucional?
A emenda contraria o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, que garante a presunção de inocência até o trânsito em julgado de uma sentença penal. Retirar o direito de votar de alguém que ainda não foi condenado é uma forma de punição antecipada, o que o STF já considerou inconstitucional em decisões anteriores, como o caso do voto de presos em 2015.
Quantos presos provisórios realmente votam no Brasil?
Nas eleições de 2022, cerca de 12.903 presos provisórios estavam aptos a votar, e 11.363 compareceram — menos de 15% do total de presos provisórios no país. Nas eleições municipais de 2024, mais de 6 mil votaram. Em comparação, o segundo turno da eleição presidencial teve mais de 117 milhões de votos válidos, tornando o impacto eleitoral praticamente nulo.
Quem ganha com essa mudança?
Ninguém ganha eleitoralmente — o número é insignificante. Mas políticos que defendem a medida ganham apoio de segmentos que veem a prisão como sinônimo de perda total de direitos. A estratégia é mais simbólica do que prática: reforçar a narrativa de que “criminosos não merecem direitos”, mesmo que isso viole a Constituição.
O que acontece se o Senado aprovar a emenda?
Mesmo após a aprovação no Senado e a sanção presidencial, o Supremo Tribunal Federal pode suspender a medida por meio de ação direta de inconstitucionalidade. O TSE também pode se recusar a implementá-la, como fez em 2019 com uma lei semelhante. A lei não entra em vigor automaticamente — ela é desafiável na Justiça.
Essa mudança afeta presos condenados?
Não. A lei já proibia o voto de quem tinha condenação transitada em julgado. A mudança afeta apenas os presos provisórios — aqueles que ainda não foram julgados. Ou seja, agora, alguém preso por suspeita de roubo, mesmo que inocente, perde o voto imediatamente, sem julgamento, sem defesa plena.
Como era feito o processo de votação nas prisões antes da emenda?
O TSE instalava seções eleitorais dentro de presídios, com mesários treinados e urnas eletrônicas. Os presos provisórios recebiam notificação por carta, podiam justificar ausência e votavam como qualquer outro eleitor. O processo era seguro, transparente e custava menos de R$ 200 por eleitor. A logística existia — e funcionava.